João Lourenço, Presidente da República de Angola, igualmente Presidente do MPLA (o único partido a governar o país desde 1975) e Titular do Poder Executivo, nega deter poderes constitucionais excessivos, sublinhando que a revisão da Carta Magna não é um acto obrigatório, havendo órgãos com competência para avançar com o processo. Pois é. Provavelmente tem poderes a menos…
Entrevistado conjuntamente pelo semanário Novo Jornal e pela Televisão Pública de Angola (TPA), que emitiu a entrevista na noite de sexta-feira, João Lourenço admitiu que a revisão da Constituição pode acontecer a qualquer momento, desde que se saiba com que objectivo.
No seu entender, o próprio Presidente pode desencadear o processo de revisão, não sendo, porém, obrigado a fazê-lo por entender que não existem razões expressas.
João Lourenço salientou também que cabe ao Parlamento (onde o partido do qual é Presidente tem uma mais do que confortável maioria), através da Conta Geral do Estado (CGE), fiscalizar a sua acção enquanto Presidente da República.
No início deste ano, os dois maiores partidos da oposição em Angola defenderam a revisão da Constituição do país, considerando que a versão actual atribui “excessivos poderes ao Presidente da República” e que “não está adequada para servir o interesse dos cidadãos”.
Segundo o presidente do grupo parlamentar da UNITA, maior partido da oposição que o MPLA ainda permite que exista), o “excesso de poderes” do Presidente angolano, emanado da Constituição de 2010, concorre para constantes solicitações de autorizações legislativas ao Parlamento, situação que deve merecer “alguma ponderação”.
“É preciso acautelar para que não se esteja a caminhar para o excesso de poderes concentrados. A leitura que temos é que devíamos já estar na altura de podermos aceder a uma revisão do excesso de poderes. Angola faz hoje uma transição de um Presidente da República [João Lourenço] que está a vestir um casaco que foi feito à medida do anterior Presidente da República [José Eduardo dos Santos]”, disse o deputado Adalberto da Costa Júnior.
“É preciso assumir que o país, formatado como se encontra, não está adequado a servir o interesse dos cidadãos. Temos necessidade de uma revisão da Constituição, da lei eleitoral (…) e, quanto mais se retardar estas matérias, mais se tem o país impreparado para servir o interesse comum”, sustentou.
André Mendes de Carvalho, presidente do grupo parlamentar da Convergência Ampla de Salvação de Angola – Coligação Eleitoral (CASA-CE), também defendeu a revisão da Constituição da República de Angola.
De acordo com o deputado, “há vários aspectos” na Constituição que “carecem de alguma revisão”, desde logo o “modelo de eleição” do Presidente da República, que, no seu entender, “é impróprio” para um regime presidencialista.
“Quando queremos um indivíduo com os poderes todos que o Presidente tem, ele [chefe de Estado] tem de ser eleito de uma maneira mais direita, porque não pode estar no meio dos deputados como cabeça-de-lista e ‘virar’ Presidente”, realçou.
Segundo o Artigo 108.º (Chefia do Estado e Poder Executivo), o Presidente da República é o Chefe de Estado, o titular do Poder Executivo e o Comandante-em-Chefe das Forças Armadas Angolanas.
Como em qualquer democracia ou Estado de Direito (isto é como quem diz) o Artigo 109.º diz que “é eleito Presidente da República e Chefe do Executivo o cabeça-de-lista, pelo círculo nacional, do partido político ou coligação de partidos políticos mais votado no quadro das eleições gerais, realizadas ao abrigo do artigo 143.º e seguintes”.
Esta mesma Constituição diz que, Artigo 11.º (Mandato): “O mandato do Presidente da República tem a duração de cinco anos, inicia com a sua tomada de posse e termina com a posse do novo Presidente eleito. Cada cidadão pode exercer até dois mandatos como Presidente da República”.
Como em qualquer democracia ou Estado de Direito (isto é como quem diz), o Artigo 119º, especifica que – entre outros – compete ao Presidente da República, enquanto Chefe de Estado:
e) Nomear o Juiz Presidente do Tribunal Constitucional e demais Juízes do referido Tribunal;
f) Nomear o Juiz Presidente do Tribunal Supremo, o Juiz Vice-Presidente e os demais Juízes do referido Tribunal, sob proposta do Conselho Superior da Magistratura Judicial;
g) Nomear o Juiz Presidente do Tribunal de Contas, o juiz Vice-Presidente e os demais Juízes do referido Tribunal, nos termos da Constituição;
h) Nomear o Juiz Presidente, o Juiz Vice-Presidente e os demais Juízes do Supremo Tribunal Militar;
i) Nomear e exonerar o Procurador-Geral da República, os Vice-Procuradores Gerais da República e os Adjuntos do Procurador-geral da República, bem como os Procuradores Militares junto do Supremo Tribunal Militar, sob proposta do Conselho Superior da Magistratura do Ministério Público;
j) Nomear e exonerar o Governador e os Vice-Governadores do Banco Nacional de Angola;
k) Nomear e exonerar os Governadores e os Vice-Governadores Provinciais;
t) Nomear os membros dos Conselhos Superiores das Magistraturas, nos termos previstos pela Constituição;
u) Designar os membros do Conselho da República e do Conselho de Segurança Nacional.
De acordo com o Artigo 120º, compete ao Presidente da República, entre outros poderes, enquanto titular do Poder Executivo:
a) Definir a orientação política do país, nos termos da Constituição;
b) Dirigir a política geral de governação do País e da Administração Pública;
c) Submeter à Assembleia Nacional a proposta de Orçamento Geral do Estado;
d) Dirigir os serviços e a actividade da Administração directa do Estado, civil e militar, superintender a Administração indirecta e exercer a tutela sobre a Administração autónoma;
e) Definir a orgânica e estabelecer a composição do Poder Executivo;
f) Estabelecer o número e a designação dos Ministros de Estado, Ministros, Secretários de Estado e Vice-Ministros;
No Artigo 122.º, sabe-se que compete ao Presidente da República, como Comandante-em-Chefe das Forças Armadas Angolanas:
a) Exercer as funções de Comandante em Chefe das Forças Armadas Angolanas;
b) Assumir a direcção superior das Forças Armadas Angolanas em caso de guerra;
c) Nomear e exonerar o Chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas Angolanas e o Chefe do Estado-Maior General Adjunto das Forças Armadas, ouvido o Conselho de Segurança Nacional;
f) Nomear e exonerar o Comandante Geral da Polícia Nacional e os 2.ºs Comandantes da Polícia Nacional, ouvido o Conselho de Segurança Nacional;
g) Nomear e exonerar os demais cargos de comando e chefia da Polícia Nacional, ouvido o Conselho de Segurança Nacional;
Em matéria de responsabilidade criminal, a Artigo 127.º diz:
1. O Presidente da República não é responsável pelos actos praticados no exercício das suas funções, salvo em caso de suborno, traição à Pátria e prática de crimes definidos pela presente Constituição como imprescritíveis e insusceptíveis de amnistia.
2. A condenação implica a destituição do cargo e a impossibilidade de candidatura para outro mandato.
3. Pelos crimes estranhos ao exercício das suas funções, o Presidente da República responde perante o Tribunal Supremo, cinco anos depois de terminado o seu mandato.
Brincadeiras de mau gosto e criminosas
Em 2014, com o intuito propagandístico típico dos regimes autocráticos, o Ministério dos Assuntos Parlamentares promoveu simultaneamente em Luanda e no Huambo debates sobre a Constituição, integrados, de acordo com a versão oficial, nas comemorações do quarto aniversário da promulgação daquela que, apesar de feita à medida e por medida de sua majestade o rei de então, José Eduardo dos Santos, deveria ser a lei fundamental do país.
Rosa Micolo, ministra dos Assuntos Parlamentares afirmou na altura ao órgão oficial do regime, o Jornal de Angola, que um dos grandes objectivos das jornadas, que decorreram sob o lema “Vamos fazer da Constituição um instrumento de trabalho”, “era reforçar o sentimento patriótico, o respeito pelos símbolos nacionais e incutir nos angolanos a consciência da importância do primado da Constituição”.
“Trata-se da lei de todas as leis e por isso as outras devem subordinar-se-lhe”, disse Rosa Micolo, que sublinhou o interesse de se “divulgar a importância da Constituição” e de a tornar “numa espécie de livro de bolso”.
Das duas, uma. Ou a ministra não sabia o que dizia ou não dizia o que sabia. Rosa Micolo sabia bem (como melhor ainda sabe hoje João Lourenço) que, para além do seu Ministério pouco mais ser do que uma figura de estilo, uma formalidade, a Constituição só é “a lei de todas as leis” quando isso interessa ao regime. Quando não interessa, outros valores prevalecem. Basta ver que quando a Oposição chama à colação o articulado da Constituição logo aparecem, sob o manto da segurança do Estado, arautos a dizer que quem tem sempre razão são os donos do poder.
A ministra referiu também ser importante que os angolanos, independentemente de onde estejam, “dominem os princípios e valores constitucionais para fazerem prevalecer direitos e liberdades fundamentais e vincarem a cidadania”. Bem que Rosa Micolo poderia, como lhe mandam, fazer a apologia da Constituição de José Eduardo dos Santos sem ter, ao mesmo tempo, de gozar forte e feio com a chipala dos angolanos. É que essa de dizer que os cidadãos devem “fazer prevalecer direitos e liberdades fundamentais e vincarem a cidadania” não lembraria nem aos jacarés de ontem nem aos de hoje que se alimentam dos corpos daqueles que tentaram usar a Constituição como “uma espécie de livro de bolso”.
A ministra considerou, segundo relata o órgão oficial, que o desconhecimento do real significado da Constituição leva a que seja mal interpretada e a atitudes erradas.
“Há pessoas que nem sequer sabem que a liberdade de escolha decorre da própria Constituição, que consagra e garante direitos políticos, sociais e culturais a todos”, explicou a ministra, acrescentando que “os nossos direitos e liberdades económicos, políticos e culturais estão previstos e plasmados na Constituição e apenas conhecendo-a é que se percebe que ninguém está excluído, que é de todos e para todos”.
Por outras palavras, a ministra dos Assuntos Parlamentares disse que o Presidente da República, o Governo, os deputados do MPLA e restantes órgãos se soberania não conhecem a Constituição, tal a violação sistemática que dela fazem. Se conhecessem saberiam, de acordo com a ministra, que a lei das leis consagra “os nossos direitos e liberdades, que ninguém está excluído, que é de todos para todos”.
Esta iniciativa de debater o assunto, de acordo com Rosa Micolo, destinava-se “a desmistificar a ideia de Constituição” tida como “um mito ou um bicho-de-sete-cabeças”. De facto, e de jure também, para os milhões de angolanos que são gerados com fome, nascem com fome e morrem pouco depois com fome, é mesmo um mítico bicho-de-sete-cabeças. Para os que tentam cortar a cabeça a essa hidra, o resultado tem sido desastroso. Por cada cabeça cortada nascem mais duas.
A ministra recordou ao JA que o analfabetismo impede que se consigam “resultados mais imediatos”, mas referiu estar “animada porque os órgãos do Estado e as organizações da sociedade civil têm trabalhado de forma exemplar para os cidadãos, sabendo ler e escrever, tenham melhores condições de defender os direitos reconhecidos na Constituição”.
A ministra não só gozou com os desgraçados como, teimando em dizer que a Constituição é igual para todos, parece estar num qualquer transe hipnótico ou, quem sabe, num sádico orgasmo alimentado pela desgraça dos escravos.
“Em muitos países os cidadãos evocam normas e princípios constitucionais em defesa de situações do dia-a-dia”, afirmou a ministra, dizendo mesmo que estão “a trabalhar para que entre nós suceda o mesmo, pois queremos que os cidadãos tenham uma convivência sã na sociedade, conheçam e exerçam os seus direitos, mas também respeitam os dos outros”.
Rosa Micolo não explicou porque é que, sempre que procuram “exercer os seus direitos” à luz da Constituição, os cidadãos são ameaçados, detidos, torturados e assassinados. Talvez devesse explicar que, com esta lei das leis, o Presidente da República não é eleito de forma nominal e que, apesar disso, é ele que escolhe o Vice-Presidente, todos os juízes do Tribunal Constitucional, todos os juízes do Supremo Tribunal, todos os juízes do Tribunal de Contas, o Procurador-Geral da Republica, o Chefe de Estado Maior das Forças Armadas e os Chefes do Estado-Maior dos diversos ramos militares.
Rosa Micolo rejeitou, com a liberdade que tem para – de acordo com a Constituição – pensar da mesma forma que os seus superiores, a tese da “partidarização da Constituição”, que “é soberana e não tem partido”.
Mais tento na língua e bom senso não ficaria mal à ministra, como hoje não ficara mal a João Lourenço. Afirmar que esta Constituição “é soberana e não tem partido” é como dizer que os rios nascem no mar ou, melhor, como obrigar a UNICEF a entrar na cadeia alimentar dos jacarés porque diz que Angola é dos países com maior índice de mortalidade infantil.
Sobre a suposta separação de poderes, a ministra diz que “em Angola estão bem definidos”, que “há o legislativo, que é do Parlamento, o exercido pelo Presidente da República enquanto titular do poder executivo, e o judicial, o dos tribunais”.
Que boa novidade nos deu Rosa Micolo. Todos sabemos que, em teoria, os poderes estão separados. Na prática todos sabem que quem manda no Parlamento é o MPLA e quem manda no MPLA era José Eduardo dos Santos e hoje é João Lourenço. Todos sabem que o Governo executa o que o seu líder manda. Todos sabem que o poder judicial, os tribunais, a PGR existem e que quem neles manda – por força da Constituição – é João Lourenço.